terça-feira, 9 de outubro de 2007

As duas faces da convicção...

A religião sempre foi um elemento importantíssimo para todo o homem, contudo hoje está mais presente do que nunca, encontrei este artigo : do professor universitário João César das Neves que retrata muitobem esta realidade, achei-o muito interessante por isso decidi partilhá-lo convosco.


É lugar-comum dizer-se hoje que a religião constitui um elemento decisivo da situação mundial. Muitas questões sociopolíticas aparecem ligadas a ela, da diplomacia ao terrorismo, das leis da vida e família ao urbanismo e imigração, educação e saúde. Estranhamente, num tempo que se orgulha de ser científico, são esquecidos os resultados mais básicos da investigação séria sobre o tema. Por isso se dizem tantos disparates.
No livro de 1950 The Individual and his Religion (Mac Millan) e obras seguintes, o grande psicólogo americano Gordon W. Allport (1897-1867), fundador da psicologia da personalidade, introduziu aquela que é hoje a distinção mais influente neste tratamento científico. Os conceitos de "religião intrínseca e extrínseca" foram-se tornando a abordagem consensual e a base dos estudos empíricos sobre religiosidade. O modelo é complexo, mas as ideias fundamentais são fáceis de descrever. Religião intrínseca é a crença profunda, onde o fiel encontra a estrutura fundamental da sua existência, que dá significado à vida e em termos da qual tudo compreende. Religião extrínseca é a religião do conforto e da convenção social, que constitui um elemento auto-suficiente que satisfaz o sujeito. Na expressão hoje consagrada, a pessoa extrinsecamente motivada usa a sua religião, enquanto a intrinsecamente motivada vive a sua religião.
Note-se que esta distinção não separa crentes de agnósticos ou fervorosos de não praticantes. Ela manifesta-se apenas entre pessoas convictamente empenhadas na sua fé, mas com motivações distintas. Por vezes até são os extrinsecamente religiosos que se apresentam mais devotos e cumpridores, pois é normal que uma adesão espiritual seja comedida e modesta, enquanto o prosélito sociocultural usa de espalhafato. Mas no fundo ele adora a sua felicidade mais do que o Senhor da felicidade.
Como seria de esperar, Allport relaciona as duas atitudes com a personalidade e o seu grau de maturidade. Enquanto a religião intrínseca se encontra em pessoas equilibradas e sensatas, a extrínseca é própria dos caracteres mais inseguros e imaturos. Daqui saem várias consequências. A religião intrínseca relaciona-se com toda a vida, é integradora, unificante, orientadora. Pelo seu lado, a extrínseca é compartimentada, preconceituosa, exclusivista, dependente, instrumental, utilitária, reconfortante. Os religiosos conservadores costumam ser extrínsecos. Os intrínsecos são humildes.
Um efeito crucial, que o autor sublinhou desde o princípio e foi sucessivamente confirmado nos estudos, é que o fanatismo e intolerância surge muito mais na religião extrínseca. Se a crença suporta o modo de vida, posição social e costumes culturais, é normal reagir brutalmente perante os desafios. Assim, a maioria das críticas à religião refere-se a manifestações da variedade extrínseca. Na guerra e violência religiosa está em causa, antes de mais, a defesa das estruturas sociocomunitárias que os dogmas impregnam. Pelo contrário, viver a vida numa entrega total ao Sublime leva a suportar com bonomia as contrariedades e a simpatizar instintivamente com os que fazem o mesmo noutros cultos. Estas ideias vêm de um modelo científico que, dotado de escalas avaliativas, permite observações rigorosas e deduções consistentes. Mas ao mesmo tempo elas constituem velhas constatações de sempre. Encontramo-las nos debates entre Cristo e os fariseus, como em inúmeras passagens dos Analectos, de Confúcio, dos Hadith, de Maomé, e tantos outros. Mas elas são também essenciais para compreender os vários fenómenos espirituais recentes, pois o sucesso das novas seitas e movimentos esotérico-religiosos deve-se ao facto de, em geral, prometerem uma crença de conforto e bem-estar, sem conversão ou penitência.
Mesmo fora do âmbito estrito da religião, muitos partidos e ideologias sabem bem como, entre os seus correligionários, existem os que entregam a sua vida à doutrina e os que fazem dela modo de vida. "Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração" (Mt 6, 21).

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